MANIFESTAÇÕES DOS ESTUDANTES DE VITÓRIA PARTE CRÕNICA
Com a pistola na cara: Eu, baderneiro,
confesso minha culpa, meu pecado
Henrique Alves
Foto capa: Nerter Samora
Na noite dessa quinta-feira (2) os substantivos “violência” e “brutalidade” ganharam três novos sinônimos: José Renato Casagrande, Givaldo Vieira e Henrique Herkenhoff. Senti isso na carne. Senti isso na alma. Dizem que o diálogo foi tentado: não, não foi. Nessa quinta, a democracia foi feita à base da porrada, na linguagem da pura força bruta.
Eram 17h30 quando, da minha casa, em Vila Velha, eu acompanhava os protestos. Dividia-me entre o rádio e o twitter (que fornecia links para as transmissões ao vivo, via vídeo). Naquele momento, os estudantes tomavam a Reta da Penha em direção à Terceira Ponte. Pelas fotos e vídeos, a massa estudantil parecia volumosa. Não pensei duas vezes, pois: catei minhas coisas e fui cobrir a manifestação. Pensava em colher material para uma possível reportagem de fim de semana.
Fui para o ponto do Shopping Praia da Costa, que, pelas circunstâncias, estava surpreendentemente vazio Entrei num 507 que, mal andou 10 metros, estancou. Era o primeiro indício de anormalidade. Por ordem da Polícia Militar, se não me engano, a Terceira Ponte fora interditada e ficou assim por 20 minutos. No ônibus, os passageiros discutiam se aquela era ou não uma manifestação legítima. Uma vez liberada, a ponte retomou o fluxo normal. Saltei no primeiro ponto após a ponte e, voltando pela rua do Ministério Público Estadual (MPES), senti que a atmosfera, antes vagamente tensa, tomou de vez tons sinistramente carregados. A normalmente pacata Duckla de Aguiar estava sombria: policiais e mais policiais - polícia montada, a tropa de choque formando seu paredão - estavam prontos para o combate.
Atravessei esse cenário com absoluta tranqüilidade, era um cidadão que não devia nada a ninguém. Mas, quando alcancei a metade da rua, um estrondo ensurdecedor cortou o ar. Pessoas corriam, uma densa fumaça branca se espalhava. Percebi então o que acontecia: policiais dispersavam os estudantes, daquele jeito que a gente conhece, para fora da Duckla de Aguiar, em direção à César Helal. Enfiei-me então pela Ulisses Sarmento, para, já no outro lado, na avenida (em frente à antiga Giacomim), acompanhar tudo mais de perto. Corri feito um louco e alcancei a avenida: o sentido Centro-Reta da Penha estava parado, tomado por carros e ônibus. O sentido oposto estava vazio: havia uma lacuna entre os muitos manifestantes que ali se aglomeravam e os policiais que se concentravam na intercessão entre a César Hilal e a Desembargador Santos Neves.
A fim de ter um bom panorama das movimentações, me afastei dos manifestantes e fui para um ponto de ônibus, aquele primeiro após a curva em que as duas avenidas se encontram. Havia ali um grupo de mais ou menos 20 manifestantes, em frente à entrada de um edifício. Talvez tal tenha sido meu erro. Lá atrás estava o Choque, lá na frente, os manifestantes e nós no meio de tudo. Precisamente neste ponto a brutalidade, antes apenas uma ameaça iminente, se revelou com uma repugnante intensidade.
A Polícia Militar, o Choque, a Companhia de Rondas Ostensivas Tático Motorizadas (Rotam) e, sobretudo, o Batalhão de Missões Especiais (BME) se valeram de uma pedagogia que só eles, apenas eles e tão-somente eles, entendem: a pedagogia da bala de borracha, do spray de pimenta e das - impecável eufemismo - bombas de efeito moral. Esta é a pedagogia que a força de segurança capixaba ministra quando vai lidar com estudantes. Mas, estes, coitados, ainda hoje tentam entendê-la. Nessa quinta-feira, a aula foi ministrada nos corpos e almas.
De repente, não mais que de repente, da antiga Giacomim saíram os policiais da Tropa de Choque. Assomaram já lançando as tais bombas e atirando balas de borracha. Covardia é pouco. Era um estouro atrás do outro. Num pequeno grupo de carros parados em frente àquele ponto, uma mulher deixou seu veículo; transtornada, num choro desesperado, gritava para os policiais: “Para com isso!! Para!!”. Em vão. Cada vez mais atroz, a investida continuou.
Enquanto isso, a força disposta no encontro das avenidas se aproximava cada vez mais. E a arbitrariedade policial decidiu que aquele cidadão que não devia nada a ninguém tinha, sim, uma dívida. Os policiais estavam já muito perto, mas não me movi. Achava que, como tudo na vida, truculência tem limite. Não, não tem – especialmente quando as forças de segurança capixabas estão em ação. Achava também que, em última instância, bastaria eu me identificar como jornalista.
Não tive tempo para nada. Uma policial - branca, loira, olhos claros - foi chegando com uma pistola em punho, apontada para meu rosto: “Deita no chão! Deita! Deita no chão!”, ordenava, aos gritos. Obedeci. Junto com ela, um batalhão chegou e, torcendo braços, com chutes e pontapés, imobilizou boa parte dos que ali estavam. De barriga pro chão, não pude contar quantos estavam na mesma situação. “Bando de baderneiro filha da puta! Tão pensando que isso daqui é o quê?!”, vociferou um policial. Escopetas eram apontadas para o rosto de estudantes. Policiais invadiram o prédio residencial e de lá trouxeram mais gente.
Quando me joguei no chão, fiquei com medo - afinal, quem não ficaria com um batalhão armado até os dentes diante de si? Mas o sentimento não foi provocado apenas pela visão dos policiais e seus brinquedos. A forma como eles nos “abordaram” (muitas aspas; muitas mesmo) dizia sem hesitações que não estavam ali para brincadeira. Muito menos para o diálogo. Não perguntaram que eu era e muito menos o que fazia ali. Só muito mais tarde, esse procedimento, natural em legítimas democracias, seria observado.
Os esparramados no chão foram algemados. A ação foi tão desproporcional que, entre os manifestantes, um mero trabalhador foi preso. Ele trabalha pela Odebrecht na obras da Petrobrás na Reta da Penha. Estava no ponto de ônibus por acaso, esperando o ônibus. Ia para casa, em Vila Velha. Mas o destino aprontou das suas: o trabalhador foi mais um detido. Eu e mais um menino de 16 anos fomos levados para uma daquelas Blazers azuis da Rotam. Policiais revistaram nossa mochilas. Trancaram-nos no camburão e os policiais entraram no carro (cinco ao todo). Antes de acomodar-se na viatura, uma policial saiu-se com esta: “Agora eu atirei com força!”. Parabéns pra ela, não?
Ficamos rodando um tempo pelas ruas de Vitória. Não consegui identificar por onde passamos. Dentro do veículo, um policial disse: “Que estudante o que! É tudo um bando de filha da puta!”. Mas paramos, sabe-se lá por quê, em determinada rua. E veio um policial. Apresentava um serenidade tocante. Abriu o camburão e com um sorrisinho no rosto, disse, intimidador: “Rapaz, vocês vão apanhar pra caramba. Vão cagar mais que neném. Vão apanhar muito mesmo”.
Eu sabia que aquilo era uma tortura psicológica das mais rasteiras, ingênuas e pueris. Assim como as agressões verbais: adoravam nos chamar de “filho da puta”. Ríspida, uma policial perguntou para o mais novo: “Onde você mora? E onde estuda”. O menino respondeu. E virou-se pra mim: “E você?”. “Eu já sou formado. Trabalho como jornalista”. “Trabalha tacando pedra?”. “Não taquei pedra em ninguém, você pode ter certeza disso”. Ela, então, fechou o camburão e nos deixou em paz.
Como percebram que meu companheiro era bem mais novo que eu, os policiais encarnaram nele, dizendo que iria apanhar e tudo o mais. Mas, falando baixinho, para não dar bandeira, tranqüilizei-o, disse que não iria acontecer nada daquilo, nem com ele, nem comigo, nem com ninguém. Eram apenas (covardes) bravatas. Aí veio o momento de humor: dois policiais me questionaram das minhas ocupações. Respondi que era jornalista. E eles riram, como quem diz: “Ah, ta. E eu sou o Casagrande!”. Fazer o quê, né?
Chegamos à rua do DPJ de Vitória. Os carros, estacionados em fileira, estavam sobre o canteiro central da rua. Ficamos mais um tempo parados, dentro do “cofre” (na gíria policial) fechado e abafado. E, como não?, claro que teve mais torturazinha psicológica: “Vocês [estudantes] não vivem dizendo que policial é covarde? É isso aí. A gente é covarde mesmo”. Logo em seguida, uma policial pegou nossos dados - nome, idade, profissão, endereço, filiação.
E finalmente fomos levados ao DPJ. Aos poucos, outros manifestantes detidos também foram chegando, todos se acomodando nas cadeiras do saguão. Enquanto isso, duas advogadas do Sindicato dos Advogados do Espírito Santo recolhiam o nome e a ocupação de cada detido. Ali, na frente de mais gente e de advogados, os policiais nunca pareceram tão cordiais.
O tempo todo - exceto a passagem da pistola apontada para mim - estive muito tranquilo. Mesmo. Em relação aos outros detidos, a sensação era também de certa calma, apenas por vezes perturbada por uma pequena tensão. Mas estava tudo bem. Fomos todos, então, levados à cela do DPJ. Importante: ainda estávamos todos algemados. Conduziram-nos, antes, a um banheiro, localizado atrás da cela. Lá nos algemaram em duplas.
E, agora sim, estávamos todos na cela. Quente e abafada: eram 20 homens dentro de uma cela medindo entre 30 e 40 metros quadrados. Uma faixa vermelha dividia o recinto: do lado de lá, sete homens já o “habitavam” (alguns estavam ali há mais de três dias). Segundo os policiais civis, eram traficantes perigosos. Do lado de cá, se acomodaram os manifestantes.
O amor, o sorriso e a flor
Marrentos, os policiais civis “pediam”, com tocante delicadeza, que nos sentássemos. Não podíamos ficar em pé. A marra só cedeu quando chegaram os representantes de entidades estaduais de direitos humanos – entre eles, o advogado André Moreira e o defensor público e vice-presidente do Conselho estadual de Direitos Humanos (CEDH), Bruno Nascimento.
Daí pra frente,correu tudo bem. Com os representantes ali, as algemas foram retiradas. E, como os pais e parentes acorreram ao DPJ, a comida chegou: biscoitos, salgados, pão, mortadela, presunto, queijo, refrigerante e água. Era tanta comida que, a certa altura, foi proposta uma greve de fome. Proposta rejeitada, claro. Vale lembrar: os provimentos foram divididos com os primeiros detidos.
Eram oito da noite quando eu e meu companheiro entramos no “cofre”. Chegamos ao DPJ às nove. Eu fui liberado às duas da manhã. Ou seja, foram seis horas de detenção. O processo poderia ter sido mais arrastado. Mas uma comitiva do MPES chegou ao local e acelerou os trâmites. Queriam nos enquadrar em pelo menos dois artigos: corrupção de menores (havia três, com 16 e 17 anos) e depredação do patrimônio público. A atuação de representantes de entidades e dos promotores conseguiu derrubar as duas. No final, assinamos um Termo Circunstanciado. Um a um, após confirmar dados com um escrivão, deixamos a simpática cela daquele DPJ.
Mais ou menos às três e meia da manhã, eu estava do lado de fora do DPJ. Batia um papo com os outros detidos. Então, a porta se abre e de lá sai, corpulento, o secretário de Estado de Segurança Pública, Henrique Herkenhoff. Não faço a menor ideia de que horas ele chegou. O secretário foi espairecer, fumar um cigarrinho. A noite foi longa para ele. Ninguém sabe o que o secretário foi fazer lá - defender os estudantes é que não era - mas Herkenhoff ficava de lá pra cá e de cá pra lá no DPJ.
Tal é o saldo destas minhas memórias do cárcere: 26 novos amigos, seis horas de detenção e nove horas de convivência com policiais – militares e civis. O sol já despontava naquele morro ali (que não sei qual é, atrás do Atacado São Paulo). Eram cinco e meia da manhã quando o último detento foi liberado. Foi a mesma hora em que peguei minha mochila e fui-me embora. Esse 2 de junho não vai deixar saudades. Talvez para o governador, seu vice e o secretário de Segurança.
http://www.seculodiario.com.br/exibir_not.asp?id=11422
confesso minha culpa, meu pecado
Henrique Alves
Foto capa: Nerter Samora
Na noite dessa quinta-feira (2) os substantivos “violência” e “brutalidade” ganharam três novos sinônimos: José Renato Casagrande, Givaldo Vieira e Henrique Herkenhoff. Senti isso na carne. Senti isso na alma. Dizem que o diálogo foi tentado: não, não foi. Nessa quinta, a democracia foi feita à base da porrada, na linguagem da pura força bruta.
Eram 17h30 quando, da minha casa, em Vila Velha, eu acompanhava os protestos. Dividia-me entre o rádio e o twitter (que fornecia links para as transmissões ao vivo, via vídeo). Naquele momento, os estudantes tomavam a Reta da Penha em direção à Terceira Ponte. Pelas fotos e vídeos, a massa estudantil parecia volumosa. Não pensei duas vezes, pois: catei minhas coisas e fui cobrir a manifestação. Pensava em colher material para uma possível reportagem de fim de semana.
Fui para o ponto do Shopping Praia da Costa, que, pelas circunstâncias, estava surpreendentemente vazio Entrei num 507 que, mal andou 10 metros, estancou. Era o primeiro indício de anormalidade. Por ordem da Polícia Militar, se não me engano, a Terceira Ponte fora interditada e ficou assim por 20 minutos. No ônibus, os passageiros discutiam se aquela era ou não uma manifestação legítima. Uma vez liberada, a ponte retomou o fluxo normal. Saltei no primeiro ponto após a ponte e, voltando pela rua do Ministério Público Estadual (MPES), senti que a atmosfera, antes vagamente tensa, tomou de vez tons sinistramente carregados. A normalmente pacata Duckla de Aguiar estava sombria: policiais e mais policiais - polícia montada, a tropa de choque formando seu paredão - estavam prontos para o combate.
Atravessei esse cenário com absoluta tranqüilidade, era um cidadão que não devia nada a ninguém. Mas, quando alcancei a metade da rua, um estrondo ensurdecedor cortou o ar. Pessoas corriam, uma densa fumaça branca se espalhava. Percebi então o que acontecia: policiais dispersavam os estudantes, daquele jeito que a gente conhece, para fora da Duckla de Aguiar, em direção à César Helal. Enfiei-me então pela Ulisses Sarmento, para, já no outro lado, na avenida (em frente à antiga Giacomim), acompanhar tudo mais de perto. Corri feito um louco e alcancei a avenida: o sentido Centro-Reta da Penha estava parado, tomado por carros e ônibus. O sentido oposto estava vazio: havia uma lacuna entre os muitos manifestantes que ali se aglomeravam e os policiais que se concentravam na intercessão entre a César Hilal e a Desembargador Santos Neves.
A fim de ter um bom panorama das movimentações, me afastei dos manifestantes e fui para um ponto de ônibus, aquele primeiro após a curva em que as duas avenidas se encontram. Havia ali um grupo de mais ou menos 20 manifestantes, em frente à entrada de um edifício. Talvez tal tenha sido meu erro. Lá atrás estava o Choque, lá na frente, os manifestantes e nós no meio de tudo. Precisamente neste ponto a brutalidade, antes apenas uma ameaça iminente, se revelou com uma repugnante intensidade.
A Polícia Militar, o Choque, a Companhia de Rondas Ostensivas Tático Motorizadas (Rotam) e, sobretudo, o Batalhão de Missões Especiais (BME) se valeram de uma pedagogia que só eles, apenas eles e tão-somente eles, entendem: a pedagogia da bala de borracha, do spray de pimenta e das - impecável eufemismo - bombas de efeito moral. Esta é a pedagogia que a força de segurança capixaba ministra quando vai lidar com estudantes. Mas, estes, coitados, ainda hoje tentam entendê-la. Nessa quinta-feira, a aula foi ministrada nos corpos e almas.
De repente, não mais que de repente, da antiga Giacomim saíram os policiais da Tropa de Choque. Assomaram já lançando as tais bombas e atirando balas de borracha. Covardia é pouco. Era um estouro atrás do outro. Num pequeno grupo de carros parados em frente àquele ponto, uma mulher deixou seu veículo; transtornada, num choro desesperado, gritava para os policiais: “Para com isso!! Para!!”. Em vão. Cada vez mais atroz, a investida continuou.
Enquanto isso, a força disposta no encontro das avenidas se aproximava cada vez mais. E a arbitrariedade policial decidiu que aquele cidadão que não devia nada a ninguém tinha, sim, uma dívida. Os policiais estavam já muito perto, mas não me movi. Achava que, como tudo na vida, truculência tem limite. Não, não tem – especialmente quando as forças de segurança capixabas estão em ação. Achava também que, em última instância, bastaria eu me identificar como jornalista.
Não tive tempo para nada. Uma policial - branca, loira, olhos claros - foi chegando com uma pistola em punho, apontada para meu rosto: “Deita no chão! Deita! Deita no chão!”, ordenava, aos gritos. Obedeci. Junto com ela, um batalhão chegou e, torcendo braços, com chutes e pontapés, imobilizou boa parte dos que ali estavam. De barriga pro chão, não pude contar quantos estavam na mesma situação. “Bando de baderneiro filha da puta! Tão pensando que isso daqui é o quê?!”, vociferou um policial. Escopetas eram apontadas para o rosto de estudantes. Policiais invadiram o prédio residencial e de lá trouxeram mais gente.
Quando me joguei no chão, fiquei com medo - afinal, quem não ficaria com um batalhão armado até os dentes diante de si? Mas o sentimento não foi provocado apenas pela visão dos policiais e seus brinquedos. A forma como eles nos “abordaram” (muitas aspas; muitas mesmo) dizia sem hesitações que não estavam ali para brincadeira. Muito menos para o diálogo. Não perguntaram que eu era e muito menos o que fazia ali. Só muito mais tarde, esse procedimento, natural em legítimas democracias, seria observado.
Os esparramados no chão foram algemados. A ação foi tão desproporcional que, entre os manifestantes, um mero trabalhador foi preso. Ele trabalha pela Odebrecht na obras da Petrobrás na Reta da Penha. Estava no ponto de ônibus por acaso, esperando o ônibus. Ia para casa, em Vila Velha. Mas o destino aprontou das suas: o trabalhador foi mais um detido. Eu e mais um menino de 16 anos fomos levados para uma daquelas Blazers azuis da Rotam. Policiais revistaram nossa mochilas. Trancaram-nos no camburão e os policiais entraram no carro (cinco ao todo). Antes de acomodar-se na viatura, uma policial saiu-se com esta: “Agora eu atirei com força!”. Parabéns pra ela, não?
Ficamos rodando um tempo pelas ruas de Vitória. Não consegui identificar por onde passamos. Dentro do veículo, um policial disse: “Que estudante o que! É tudo um bando de filha da puta!”. Mas paramos, sabe-se lá por quê, em determinada rua. E veio um policial. Apresentava um serenidade tocante. Abriu o camburão e com um sorrisinho no rosto, disse, intimidador: “Rapaz, vocês vão apanhar pra caramba. Vão cagar mais que neném. Vão apanhar muito mesmo”.
Eu sabia que aquilo era uma tortura psicológica das mais rasteiras, ingênuas e pueris. Assim como as agressões verbais: adoravam nos chamar de “filho da puta”. Ríspida, uma policial perguntou para o mais novo: “Onde você mora? E onde estuda”. O menino respondeu. E virou-se pra mim: “E você?”. “Eu já sou formado. Trabalho como jornalista”. “Trabalha tacando pedra?”. “Não taquei pedra em ninguém, você pode ter certeza disso”. Ela, então, fechou o camburão e nos deixou em paz.
Como percebram que meu companheiro era bem mais novo que eu, os policiais encarnaram nele, dizendo que iria apanhar e tudo o mais. Mas, falando baixinho, para não dar bandeira, tranqüilizei-o, disse que não iria acontecer nada daquilo, nem com ele, nem comigo, nem com ninguém. Eram apenas (covardes) bravatas. Aí veio o momento de humor: dois policiais me questionaram das minhas ocupações. Respondi que era jornalista. E eles riram, como quem diz: “Ah, ta. E eu sou o Casagrande!”. Fazer o quê, né?
Chegamos à rua do DPJ de Vitória. Os carros, estacionados em fileira, estavam sobre o canteiro central da rua. Ficamos mais um tempo parados, dentro do “cofre” (na gíria policial) fechado e abafado. E, como não?, claro que teve mais torturazinha psicológica: “Vocês [estudantes] não vivem dizendo que policial é covarde? É isso aí. A gente é covarde mesmo”. Logo em seguida, uma policial pegou nossos dados - nome, idade, profissão, endereço, filiação.
E finalmente fomos levados ao DPJ. Aos poucos, outros manifestantes detidos também foram chegando, todos se acomodando nas cadeiras do saguão. Enquanto isso, duas advogadas do Sindicato dos Advogados do Espírito Santo recolhiam o nome e a ocupação de cada detido. Ali, na frente de mais gente e de advogados, os policiais nunca pareceram tão cordiais.
O tempo todo - exceto a passagem da pistola apontada para mim - estive muito tranquilo. Mesmo. Em relação aos outros detidos, a sensação era também de certa calma, apenas por vezes perturbada por uma pequena tensão. Mas estava tudo bem. Fomos todos, então, levados à cela do DPJ. Importante: ainda estávamos todos algemados. Conduziram-nos, antes, a um banheiro, localizado atrás da cela. Lá nos algemaram em duplas.
E, agora sim, estávamos todos na cela. Quente e abafada: eram 20 homens dentro de uma cela medindo entre 30 e 40 metros quadrados. Uma faixa vermelha dividia o recinto: do lado de lá, sete homens já o “habitavam” (alguns estavam ali há mais de três dias). Segundo os policiais civis, eram traficantes perigosos. Do lado de cá, se acomodaram os manifestantes.
O amor, o sorriso e a flor
Marrentos, os policiais civis “pediam”, com tocante delicadeza, que nos sentássemos. Não podíamos ficar em pé. A marra só cedeu quando chegaram os representantes de entidades estaduais de direitos humanos – entre eles, o advogado André Moreira e o defensor público e vice-presidente do Conselho estadual de Direitos Humanos (CEDH), Bruno Nascimento.
Daí pra frente,correu tudo bem. Com os representantes ali, as algemas foram retiradas. E, como os pais e parentes acorreram ao DPJ, a comida chegou: biscoitos, salgados, pão, mortadela, presunto, queijo, refrigerante e água. Era tanta comida que, a certa altura, foi proposta uma greve de fome. Proposta rejeitada, claro. Vale lembrar: os provimentos foram divididos com os primeiros detidos.
Eram oito da noite quando eu e meu companheiro entramos no “cofre”. Chegamos ao DPJ às nove. Eu fui liberado às duas da manhã. Ou seja, foram seis horas de detenção. O processo poderia ter sido mais arrastado. Mas uma comitiva do MPES chegou ao local e acelerou os trâmites. Queriam nos enquadrar em pelo menos dois artigos: corrupção de menores (havia três, com 16 e 17 anos) e depredação do patrimônio público. A atuação de representantes de entidades e dos promotores conseguiu derrubar as duas. No final, assinamos um Termo Circunstanciado. Um a um, após confirmar dados com um escrivão, deixamos a simpática cela daquele DPJ.
Mais ou menos às três e meia da manhã, eu estava do lado de fora do DPJ. Batia um papo com os outros detidos. Então, a porta se abre e de lá sai, corpulento, o secretário de Estado de Segurança Pública, Henrique Herkenhoff. Não faço a menor ideia de que horas ele chegou. O secretário foi espairecer, fumar um cigarrinho. A noite foi longa para ele. Ninguém sabe o que o secretário foi fazer lá - defender os estudantes é que não era - mas Herkenhoff ficava de lá pra cá e de cá pra lá no DPJ.
Tal é o saldo destas minhas memórias do cárcere: 26 novos amigos, seis horas de detenção e nove horas de convivência com policiais – militares e civis. O sol já despontava naquele morro ali (que não sei qual é, atrás do Atacado São Paulo). Eram cinco e meia da manhã quando o último detento foi liberado. Foi a mesma hora em que peguei minha mochila e fui-me embora. Esse 2 de junho não vai deixar saudades. Talvez para o governador, seu vice e o secretário de Segurança.
http://www.seculodiario.com.br/exibir_not.asp?id=11422